O que você faz com a sua dor? A maioria utiliza as próprias dores para justificar suas derrotas, limitações, insegurança, infelicidade. Poucos encontram força, discernimento e criatividade para transformar o que significava sofrimento, angústia, em combustível para seguir firme na edificação de si próprio, na solidificação da própria identidade, em motivo de orgulho. E, a partir daí, estabelecer metas, desenvolver estratégias, projetos e, até mesmo, transformar sua vida num livro é uma iniciativa que fornecerá um espelho e um trampolim para que outras pessoas se reconheçam e possam saltar para o lago dourado da felicidade.
Num País em que o padrão oficial de beleza e de poder, por mais de 500 anos, é ter fenótipo europeu, viril e ter de nascido em uma grande metrópole, de preferência no Sul ou no Sudeste, dificilmente alguém que fuja a essas características conseguirá se ver refletido positivamente no espelho social, que garante um sem número de privilégios, o mesmo espelho da educação, da mídia, das oportunidades, enfim. Com tudo isso, ainda disponibilizar-se a enfrentar a xenofobia de sociedades europeias, chega a ser um desafio que pode ser considerado uma dose para leão.
Da invisibilidade à auto-rejeição é um pulinho. Portanto, decidir seguir na contramão dessa história exige coragem, um sólido amor-próprio, excelente formação e, antes de tudo, determinação. Enxergar-se, reconhecer-se, identificar-se e não se conformar jamais com supostas limitações apregoadas por uma sociedade racista, machista, xenófoba é apenas o primeiro passo.
O passo seguinte é entender que “o homem é um ser social”, conforme afirmou Aristóteles, já no terceiro século anterior à Era Cristã, o mesmo filósofo grego para quem o ser humano é “um ser político”. Ambos os pensamentos põem em dúvida o valor do individualismo, frente coletivismo. Cada atitude do indivíduo reflete na vida de seus pares e se transforma em ato político.
Esta obra de Kor Alessandro é antes de tudo o resultado de uma conquista. Desde o título, seu autor vai nos revelando que sua primeira conquista foi a si próprio, ao deparar-se com o próprio reflexo no espelho que, além de nega-lo, insistia em cristalizar sua invisibilidade. Ao quebrar esse espelho, rompeu com paradigmas, repletos de estereótipos, preconceitos, complexos de inferioridade, que o proibiam de se amar e realizar-se, por ser negro, por ser homossexual, por ter nascido e se criado no Nordeste do Brasil. Foi aí que se descobriu lindo, fino, elegante, talentoso, estudioso, esforçado, admirado, resiliente.
Mas, como “ser social”, Kor entendeu que tornar-se um vitorioso só faz sentido se essa vitória refletir sobre a sua própria comunidade. Esse é um fenômeno quase que exclusivamente negro em nosso País. Todos somos beneficiários das ações de cada um de nós, seja para o bem ou para o mal. A ação criminosa de um reflete sobre todos e se faz justificativa para sermos todos suspeitos. Já entre caucasianos isso não ocorre.
Porém, todos nos sentimos realizados, com a realização de uma única pessoa negra. Basta ver o que a conquista de Obama da presidência dos EUA, deu-nos a todos negros e negras uma sensação de conquista de poder. Pena que ficou apenas na sensação!
Ao escrever esta obra, Kor Alessandro socializa conosco sua vitória. Não apenas uma vitória efêmera, mas perene, pois vai da autodescoberta à conquista do respeito, do reconhecimento, da certeza de que está vivenciando, da melhor maneira possível, o papel que se determinou a interpretar, nesta passagem por este tempo e espaço.
Ao publicá-la, a Quilombhoje Literatura, mais uma vez – como vem fazendo a cerca de quatro décadas –, nos fornece uma obra-referência para refletirmos um pouco mais sobre quem somos, como é o mundo em que vivemos e, principalmente, como conquistar um pouco mais da liberdade que foi negada a nossos ancestrais e a nós mesmos, apesar da Lei Área e das incansáveis lutas seculares dos nossos povos de todos os gêneros.
Diante do espelho de Kor, é impossível não se sentir mais livre e vencedor. A dor não passa, mas, pelo menos, nos sentimos muito mais elegantes.
Miriam S. Q. De Castro